4 de junho de 2023

RESENHA: Tudo é rio

Autor(a): Carla Madeira
Editora: Record
Número de páginas: 208

Sinopse: Com uma narrativa madura, precisa e ao mesmo tempo delicada e poética, o romance narra a história do casal Dalva e Venâncio, que tem a vida transformada após uma perda trágica, resultado do ciúme doentio do marido, e de Lucy, a prostituta mais depravada e cobiçada da cidade, que entra no caminho deles, formando um triângulo amoroso.
Na orelha do livro, Martha Medeiros escreve: “Tudo é rio é uma obra-prima, e não há exagero no que afirmo. É daqueles livros que, ao ser terminado, dá vontade de começar de novo, no mesmo instante, desta vez para se demorar em cada linha, saborear cada frase, deixar-se abraçar pela poesia da prosa. Na primeira leitura, essa entrega mais lenta é quase impossível, pois a correnteza dos acontecimentos nos leva até a última página sem nos dar chance para respirar. É preciso manter-se à tona ou a gente se afoga.”
A metáfora do rio se revela por meio da narrativa que flui – ora intensa, ora mais branda – de forma ininterrupta, mas também por meio do suor, da saliva, do sangue, das lágrimas, do sêmen, e Carla faz isso sem ser apelativa, sem sentimentalismo barato, com a habilidade que só os melhores escritores possuem.

Olá gente lindaaaa!
Domingo também é dia de resenha, né!? Hoje vim falar sobre livro nacional que eu queria ler há tempos e acabei devorando em dois dias. "Tudo é rio" é o livro de estreia da mineira Carla Madeira e me surpreendeu de diversas formas.
A história gira em torno de três personagens, Lucy, Venâncio e Dalva, que poderiam ser simplesmente um triângulo amoroso, mas cuja relação, assim como a constituição de cada um, são explorados de uma forma bastante complexa. Lucy é a prostituta mais cobiçada da Casa de Manu, que por ser puta não apenas na profissão, mas também na essência, é assim chamada ao longo do livro: puta. Venâncio, por sua vez, é um homem descrito como "triste, pesado", que pelo simples fato de não idolatrar Lucy como os demais homens da cidade e clientes dos prostíbulo, acaba se tornando sua maior obsessão. Dalva é esposa de Venâncio, e também um de seus tormentos, não dirigindo a ele o olhar ou a palavra há anos.  
"Venâncio foi frequentador da Casa de Manu quando atravessou o deserto de ser sozinho. Um homem triste, pesado, que carregava com ele um tormento sem tamanho." (página 12)
"A história dos dois começa sem novidade nenhuma, é a bobagem de sempre, gostar de quem não gosta da gente." (página 12)
Em doses homeopáticas, por meio de capítulos curtos e intercalados, vamos conhecendo um pouco mais sobre cada personagem. Conhecemos, por exemplo, o que levou a jovem Lucy a ser puta, mais do que isso, a desejar ser puta por assim gostar de ser.  Acompanhamos a jovem, órfã muito cedo, sua precoce fascinação pelo próprio tio e, posteriormente, sua obsessão por Venâncio, o único homem a não desejá-la. Portanto, seu primeiro desafio real. 
A obsessão de Lucy por Venâncio evidencia ainda mais seu  egoísmo, característica já presente na personagem desde o início do livro. Para Lucy, nada mais importa do que ser o centro das atenções e a mulher mais desejada, o que lhe confere um grande poder sobre os homens. Por isso, ser desejada por Venâncio é mais do que uma questão de honra, é uma questão de poder.
"Lucy cancelou a fila, jurou que não deitava com mais ninguém enquanto não fosse mulher para Venâncio. E assim foi indo, sem outro pensamento, com essa ideia encurralada. Atrofiou, diminuiu de tamanho na aflição de não ter mais o que inventar, desconfiou de todas as certezas que tinha." (página 16)
Também, nos é apresentada a história de amor entre Venâncio e Dalva, dois jovens que se apaixonam e acabam tornando-se tudo na vida um do outro.
"Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo. No caso de Venâncio e Dalva, o gosto de cada sentido grudava os dois para mais de muitas vidas, pareciam eternos de tão juntos." (página 19)
Acompanhamos a evolução do relacionamento do casal, bem como do ciúme de Venâncio, que mais tarde resultaria em uma grande tragédia. Em determinado momento da história, Venâncio, tomado pelo ciúme doentio em relação à amada, toma uma atitude repugnante e imperdoável (é algo que acontece no início do livro, mas que seria um spoiler dos grandes se eu dissesse aqui). Basta saber que nada seria capaz de diminuir sua culpa, tampouco tornar seus atos perdoáveis à Dalva. Sabem aquele marco a partir do qual nada permanece igual? Pois bem, nem Venâncio, nem Dalva, nem sua relação permanecem os mesmo. O que era amor torna-se mágoa, culpa e tormento. Venâncio e Dalva passam a ser dois estranhos sob o mesmo teto, mas seguem presos um ao outro: Venâncio preso à Dalva por culpa - pela necessidade de perdão ou pelo desejo de ter um lembrete diário de suas ações; Dalva presa à Venâncio pelo desejo de lembrá-lo de seus atos, ou pela simples incapacidade de seguir em frente de outro modo. 
"Perder amores é escurecer por dentro, uma memória do corpo que o entardecer evoca quando tinge o céu de vermelho. Para quem está sozinho depois de ter amado, o fim do dia é muito triste." (página 26)
"A liberdade é uma conversa fiada, é palavra de efeito, sempre no meio de uma frase para impressionar os desatentos, no fundo estamos presos à incapacidade de ser outra coisa diferente do que somos, do que a história da gente tramou." (página 156) 
O que posso dizer é que nada me preparou para as reviravoltas desse livro. Fui surpreendida e arrebatada. Além disso, a escrita da autora é de uma intensidade, profundidade e sensibilidade que me deixaram sem palavras. Uma escrita triste, crua e sem medo de usar as palavras como elas devem ser usadas. Sem medo de ferir. Em "Tudo é rio" tudo transborda e nada escapa à correnteza de palavras que exploram sem dó a natureza humana e suas dualidades e complexidades. Ninguém é puramente bom ou puramente mau. Seríamos muito simples se assim fossemos, né?! 
Em diversos momentos senti certa familiaridade entre sua escrita e a do escritor português Pedro Chagas Freitas (Prometo Falhar), autor do qual gosto muito. Super recomendo!

Classificação: 

***
Espero que gostem!!

Beijos e amassos!!

Nenhum comentário

Postar um comentário

Deixe sua opinião ou sugestão e faça uma blogueira feliz! :)